Enfileirados, aguardo pelo branco agora do leite, que nem todos bebiam.
Subindo os degraus de pedra que me levavam à sala, antecipava na imaginação o cerimonial do cantar do hino.
O rosto firme e rígido da senhora professora Dona Rosa Beatriz, ditava o entrar silencioso dos meus sapatos corroídos pela chuva.
De pé olhávamos uns quadros de figuras distintas do regime e das nossas gargantas ecoavam palavras trémulas, avermelhadas pelo frio.
Sentados, não mais havia espaço a murmúrios, perturbadores do silêncio.
O olhar adulto varria a sala.
Chamados ao xisto frio e escuro não havia espaço ao erro. A régua anestesiava as mãos empedernidas pelo frio. A dor e o calor irradiavam braço acima, morrendo por vezes no cotovelo hesitante.
-Não estudas!
Do rosto saltavam lágrimas que haviam ficado presas pela dor mas que se soltaram pela injustiça das palavras.
O tinteiro no meio da carteira ficava sujo pelas tremuras duma mão ainda ferida de injustiça. O mata-borrão tornava-se pequeno para dar cobro a tanta tinta derramada pelo medo.
De volta a casa, tirava os sapatos e as meias encharcadas.
Aquele escalda-pés assegurava que, no dia seguinte, a gripe não me iria visitar.
O almoço seguro estava servido. As garfadas dadas lembravam que as mesmas iriam faltar à dona dos afectos.
A tenebrosa chuva batia cruel na janela, chutada pelo vento.
A noite chega e escapa-se por entre sonhos de criança.
Nasceu um novo dia.
No estremecer da gélida manhã, calçava umas meias quentes de afeto.
Calçava um saco de plástico para enganar a chuva na sua entrada triunfante pelo enorme buraco nas solas.
Calçava os sapatos herdados do irmão do meio, que já havia herdado do irmão mais velho.
Com o dedo indicador escondia o plástico entre a meia e o sapato para os meus colegas não verem.
Estava bem. Quentinho.
-Despacha-te, já está a ficar tarde e não te esqueças de levar o guarda-chuva.
A chuva copiosa metia medo, mas à escola eu não poderia jamais faltar.
Ao fundo da praça, dita da Corujeira, para lá das folhas caídas e molhadas, estava a casa branca que, embora suja pelo medo, se mantinha limpa pela alegria das crianças que, como eu, adoravam ir à escola.
Autor: Jordão Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário